Gilberto Gil é eleito como novo imortal da Academia Brasileira de Letras
O cantor e compositor Gilberto Gil, de 79 anos, foi eleito na tarde desta quinta-feira o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras. Ele venceu uma disputa com o poeta Salgado Maranhão e o escritor Ricardo Daudt. Ministro da Cultura de 2003 a 2008, durante o governo Lula, Gil é um dos principais expoentes do movimento tropicalista, responsável por uma revolução na música e na estética brasileira a partir dos anos 1960.
Escreveu canções fundamentais como “Aquele Abraço”, “Refazenda”, “Domingo no Parque” e “A Novidade”, além de outras centenas, cujos versos foram compilados no volume “Todas as Letras”, editado em 1996 com organização de Carlos Rennó.
Mas a verdade é que Gil dispensa apresentações. A escolha de uma das figuras mais conhecidas da cultura brasileira para ocupar a cadeira deixada pelo jornalista Murilo Melo Filho, na semana seguinte à eleição da atriz Fernanda Montenegro, sugere que a Academia Brasileira de Letras esteja passando por uma mudança significativa.
Afinal, uma instituição acusada com frequência de se encastelar numa torre de marfim agora acolhe nomes de vasta popularidade, que se tornaram célebres em áreas alheias à literatura -os livros de autoria de Fernanda e Gil soam incidentais na escolha de seus nomes. Será que a Academia quer estender os braços a um público maior?
Presidente da entidade há quatro mandatos, o escritor Marco Lucchesi diz que ignorar a visibilidade desses nomes é “negar o óbvio”, mas que suas eleições não são motivadas por isso, e sim pela “compreensão de um senso mais amplo da cultura”.
“A Academia absorveu o conceito antropológico de cultura, no qual a literatura é um capítulo essencial, mas não exclusivo.” É notável também que as duas eleições são passos importantes na direção de uma maior representatividade na Casa de Machado de Assis, escritor negro que a fundou. Gil se torna hoje a segunda pessoa negra entre os 37 imortais. Fernanda é a nona mulher a sentar numa cadeira da Academia em sua história de 124 anos.
Segundo a professora Maria Arminda Arruda, da Universidade de São Paulo, a Academia Brasileira de Letras sempre foi um espaço “cioso de suas tradições” e refletia “todo um campo da cultura entendido como dominantemente masculino”. “O Brasil sempre teve escritoras, mas a aparição delas na Academia é muito posterior.”
A primeira mulher eleita foi Rachel de Queiroz, em 1977, ano em que a proibição de candidaturas femininas foi derrubada. Lucchesi de pronto afirma desejar que “a ABL seja mais próxima do IBGE”. “Ou seja, que possa espelhar toda a diversidade da nossa nação. Que obviamente tenhamos mais mulheres, negros, índios. Não como um favor, mas como um enriquecimento necessário.”
“A Academia não está elegendo negros, está elegendo intelectuais, pensadores brasileiros”, afirma a escritora Nélida Piñon, que foi a primeira mulher a presidir a casa, em 1996. “É importante dizer isso porque senão pensam que há nichos. Um nicho para negro, outro para indígena. Temos que pensar que, na verdade, a Academia espelha a realidade cultural criadora do Brasil.”
A ideia encontra coro no cineasta Cacá Diegues, um dos mais recentes imortais. “A Academia não deve ser só um difusor cultural, mas também um receptor cultural. Tem que unir todas as formas de cultura do país.” Esse elogio à diversidade, que soa unânime, é dissonante com a última grande polêmica que envolveu a instituição. Há três anos, a candidatura da escritora Conceição Evaristo, que seria a primeira mulher negra na Academia, não foi para a frente a despeito de um sonoro movimento de apoio nas redes sociais. Teve apenas um voto.
Na próxima semana, contudo, é possível que um passo significativo seja dado. O educador indígena Daniel Munduruku compete com Paulo Niemeyer e Joaquim Branco pela vaga aberta com a morte do crítico literário Alfredo Bosi. Caso vença, será o primeiro indígena da história da Academia Brasileira de Letras.
Também estão marcadas eleições para o próximo dia 25, com seis candidatos para a cadeira deixada pelo advogado Marco Maciel, que foi vice-presidente do governo Fernando Henrique Cardoso; e para 16 de dezembro, com dez nomes em disputa pela vaga do professor de filosofia Tarcísio Padilha.
Vale dar um passo para trás e entender como funcionam essas eleições. A partir do momento em que uma cadeira é declarada vaga, nas chamadas Sessões da Saudade, os novos postulantes têm 30 dias para se candidatar através de carta. Em mais 60 dias, ocorre a eleição -neste ano, um misto de virtual e presencial, mas permanece a tradição de queimar os votos ao fim da sessão.
No meio desse processo, é bem visto que o candidato faça aproximações com os imortais para colocar seu nome na praça -acadêmicos disseram à época que a ausência desse ritual foi o maior empecilho à eleição de Evaristo. O presidente da Academia evoca a figura de grandes relógios para pensar a evolução das instituições brasileiras. “Esses relógios estão ou compassados ou descompassados diante de uma demanda histórica de diversidade cultural cada vez mais urgente. A Academia está começando a dar seus passos. Não basta ter um negro e pronto, fizemos as pazes.”
A reportagem pergunta ao presidente se, ao considerar um nome, a Academia chega a pensar hoje que sua entrada seria positiva para ampliar a diversidade do quadro. “Isso está começando a acontecer”, responde ele. “É um movimento, graças a Deus, irreversível que isso seja levado em conta. Mas na Academia há o resultado das urnas, não existe uma determinação clara. Cada acadêmico votará com suas convicções.”
Quem teve um dedo ou dois por trás da eleição de Fernanda Montenegro foi Nélida Piñon, sua amiga, para quem o esforço de se aproximar da sociedade não é algo novo. “Nunca teve uma atriz, um cantor, mas cada vez que a Academia dá um passo adiante ela abre um cenário, o que é extraordinário”, afirma a escritora. “Essas coisas vão sendo feitas paliativamente. A sociedade educa as instituições e as instituições educam a sociedade.”
Segundo a professora Maria Arminda Arruda, referência em sociologia da cultura, é “muito significativo” que a Academia esteja construindo “uma visão mais alargada do que seja cultura” neste momento em que o campo “está sofrendo fortes constrições” pelo governo Bolsonaro.
Fernanda e Gil, além de representarem tradições culturais distintas, são personalidades de “posições políticas bem definidas”. “A Academia, ao trazer essas pessoas que muitas vezes são atacadas pelo que fazem, está dando um recado indireto”, diz a professora.
Lucchesi não se furta a dar recados bem diretos. Ressalta que a Academia não tinha tradição de se envolver em questões político-partidárias, mas “uma agenda de trevas encontrou uma resposta contrária” nas ações da entidade, citando posicionamentos duros que a ABL teve contra a proposta de taxação de livros e o abandono da Cinemateca. “Durante esse grande manicômio em que o Brasil se encontrou, a Academia teve que tomar posições. O problema era não responder a tudo, porque significaria promover a estupidez.”
Walter Porto e Marina Lourenço
SÃO PAULO, SP
Via Folha Press