A MERCEARIA
Quem conhece verdadeiramente o bairro da Torre, um dos mais tradicionais da capital paraibana, deve ter adentrado ou visto, pelo menos em sua fachada, a Mercearia do Vado. Ou a Bodega do Vado. Ou simplesmente a Venda do Vado, alcunha oriunda do tempo e canonizada por aqueles que gostam de uma boa geladinha com acepipes trazidos pelos próprios frequentadores, além de regada a um papo genuinamente descontraído e constantemente em flerte com os mais variados assuntos.
Esporadicamente um dos temas em questão era até quando aquele estabelecimento suportaria os avanços comerciais dos grandes hipermercados, visto que seu proprietário já sinalizava o cansaço físico e mental com o peso da idade. Para os habituais presentes naquele ponto de encontro seria utopia o fechamento definitivo de suas portas.
Mas…
O dia utópico a que eventualmente se referiam infelizmente chegara e o fato de temível relevância aconteceu. A Venda de Vado encerraria a sua história e fecharia de modo irreversível as suas portas, deixando órfãos dezenas de obstinados e eminente saudosistas, onde várias gerações deleitaram-se em suas tertúlias.
Vamos a um breve resumo da história que começou em 1950 quando o Sr. Ambrósio Vitorino de Pontes, que vem a ser o meu avô, construiu uma mercearia e chamou para tomar conta dela o Sr. Genivaldo Mendes de Figueiredo. Este somava à época vinte e poucos anos e viera de Juarez Távora (a pouco menos de 100 km da nossa capital) com as expectativas que qualquer interiorano tinha naquele tempo.
Ora, haviam se passados 65 anos com a Venda de Vado praticamente do mesmo jeito e cujos goliardos, alguns já no plano espiritual, tinham as mais diversas atividades. Comerciantes, militares, músicos, escritores, corretores, professores, engenheiros, contadores, advogados, dentre outros profissionais, já frequentaram sem jactância os tamboretes da referida casa comercial. Vale salientar que o local já foi pauta de matéria veiculada até mesmo em periódicos paraibanos.
Os personagens reais que por ali transitaram, mesmo que de modo esporádico, tinham suas peculiaridades e decerto contribuíram para que a história desse estabelecimento fosse sistematicamente sendo escrita na mente nunca ociosa de seus aspirantes à boemia. As diversas atividades profissionais que cada um tinha se resumia á uma única e prazerosa função ao ingressar naquele recinto: o bom papo irrigado com uma boa dose de seja lá qual for a preferência etílica de cada um.
É fato que dali nascera até um grupo musical amador, visto que alguns de seus tertulianos tocavam ao menos um instrumento musical. Ali se espaçavam violão, saxofone e clarinete orquestrados por um tecladista e ritmados por percussionistas que acompanhavam os vários vocalistas inspirados nas doses que degustavam. Observação importante é o fato de que o proprietário jamais permitira que se apresentassem no recinto em virtude do espaço pequeno em que ali se reuniam. Fora a paciência do mesmo, que no alto da sua quase centenária vida já poupava seus ouvidos dos disparates musicais dos que ali se propunham a oferecer música, embora uns dois ou três deles fossem ou já tivessem sido profissionais no assunto. Os “artistas” ali se organizavam pra tocar em outros palcos, ou bares, tendo inclusive sido convidados pra oferecer o “show” em cidades circunvizinhas.
O fato é que, fechadas as portas da Venda do Vado, cessaram-se as tertúlias, os acepipes, as boas conversas e os exageros alcoólicos, iniciando-se a partir de então a existência agora abstrata do famoso ponto de encontro no referido bairro.
Há de se pontuar que em praticamente todos os bairros pelo Brasil afora existe um local de história similar. Existem dias que nós achamos que nunca chegarão e existem fatos que também imaginamos que jamais acontecerão. São dias e fatos utópicos e de vez em quando a vida nos causa uma penosa surpresa gerada pela vontade de perpetuar no corpo e na mente aquilo que mais nos apraz.