O TESTAMENTO
Meus filhos, só me restou essa forma de expressão. Nâo entendo muito dessas tecnologias novas em que hoje se valoriza mais os contatos pelo celular do que aquele velho aconchego na sala que tanto meus pais me ensinaram.
Não seria isso um testamento. Tenho pouco ou quase nada para deixar, mas acho que coloquei na mesa educação suficiente para fazê-los discernir sobre o que faz bem do que é um bem.
Começo pela conta bancária. Tem muita coisa lá, não, sabe? Acho que dá pra pagar algumas despesas minhas pós-óbito, tais como um provável hospital, medicamentos e crematório.
Sim, crematório. Foi isso mesmo que leram. Não quero ser enterrado. Quero ser cremado. Ao pó voltarei, pois foi de lá que vim, mas não quero que a natureza demore muito em me devolver ao estado original da minha existência. Queimando tudo só restarão as cinzas e elas também são pó.
Deixo um carrinho não muito novo. Pena que não sejam dois, pois dessa forma a matemática seria mais fácil. Ficaria um pra cada um. Mas peço que o deixem com a pessoa que conviveu comigo nos meus últimos dias de vida, afinal, foi ela a única pessoa que estava lá comigo nos tempos mais difíceis.
Ainda tem a casa, mas só tem essa mesmo, pois a mãe de vocês deu um jeito de extrair de mim alguns outros bens à época do divórcio. A casa por direito é de vocês dois. Foi herança que seus avós deixaram pra mim e suas tias. Acabei comprando a parte delas, lembra? E sem disputa judicial. E nem precisava. A gente sempre se deu bem. Então, tomem nosso exemplo e nunca discutam por uma coisa que vocês não vão levar na hora que Deus chamar. Igual agora. Estou indo só com a roupa do couro e mesmo assim nem posso escolher com qual delas devo partir pra última viagem. Tudo isso só pra ter um cantinho pra morar. Em nenhum outro lugar me senti tão bem como naquela casa.
Se houver alguma pendenga pra quitar no cartão de crédito será muito pouco. O dinheirinho que tem na conta, umas poucas economias, vai dar pra pagar isso com sobra, afinal, meu extrato nunca me assustou. Nunca gostei de cartão de crédito. Só pra uma emergência mesmo.
Tem umas coisas esquisitas pra muita gente que eu costumava comprar e guardar. Deixo pra fazer o que quiserem. Até doar pros pobres. Há de vestir muita gente. Acho que foi o único apego que tive na vida. Sempre gostei da minha coleção.
Aqueles instrumentos musicais que eu muito usei tambem haverão de servir pra alguma igreja ou instituição de caridade. Foi lá que aprendi a usar eles e com certeza deve servir pra que alguem tambem faça bom uso deles.
De resto, deixo pra que vocês entrem em acordo. Não tem muito mesmo. De muito na minha vida só o tempo que tive pra ir aprendendo que nunca valeu a pena brigar por coisas que vão ficar aqui.